Capítulo 1: Contexto histórico de Rio das Pedras
A favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, surgiu nos anos 1970 em terrenos antes alagadiços, atraindo principalmente migrantes nordestinos em busca de trabalho nas obras da vizinha Barra da Tijuca. À medida que a Barra crescia, Rio das Pedras permanecia à margem do planejamento urbano, com pouco saneamento básico e infraestrutura precária. Estudos apontam que, em poucas décadas, a população local saltou para dezenas de milhares, vivendo em habitações improvisadas sobre manguezais e brejos (o rio que dá nome à comunidade, que era limpo nos anos 80, transformou-se num esgoto a céu aberto). Esse cenário de carência habitacional e pobreza estrutural criou as condições para grandes mobilizações por moradia ao final dos anos 1980.
Capítulo 2: Delfin Imobiliária e o projeto habitacional
O Grupo Delfin Imobiliária, presidido por Ronald Levinsohn, planejava na região da Barra um grande empreendimento residencial de alto padrão. Em 1977 iniciou-se a construção de um conjunto com 15 prédios (982 apartamentos), além de outros condomínios planejados (cerca de 16 mil unidades no total). Entretanto, após a extinção do Banco Nacional da Habitação (BNH) em meados da década de 1980, as obras foram abandonadas (oficialmente por falta de recursos) e o projeto foi interrompido em 1984, mesmo tendo vendido 216 apartamentos. Na prática, os edifícios ficaram inacabados: construídos sobre solo de manguezal com grandes fissuras aparentes no hall e na garagem, sem elevadores nem instalações de luz, água ou esgoto. Por isso, faltava habite-se, e o condomínio nunca foi liberado para habitação formal.
Capítulo 3: Motivação da ocupação e perfil dos invasores
Frente à crise habitacional, cerca de 6.000 pessoas, em sua maioria moradores da própria comunidade de Rio das Pedras, decidiram ocupar o conjunto inacabado em 17 de março de 1991. A iniciativa foi impulsionada por líderes, que já vinham negociando com o governo estadual e com a construtora Delfin uma divisão das terras e a promessa de novas casas populares. Em 1990, um acordo informal previa destinar metade do terreno do futuro condomínio para os moradores de Rio das Pedras (junto com a construção de moradias populares), mas os ocupantes perceberam que a Delfin cercou a área negando o combinado. Diante dessa “traição” na negociação, os moradores organizaram a invasão de todos os prédios ainda vazios. Assim, famílias sem-teto – muitas vindas de áreas alagadiças vizinhas (“Areal I” – loteadas pelos próprios moradores), trabalhadores informais, desempregados e migrantes nordestinos – subiram até 10 andares carregando latas de água e velas para iluminar os apartamentos, em busca de um lar.
Capítulo 4: Reação do poder público e desocupação
O governador Leonel Brizola (PDT), então no fim de seu mandato, optou por evitar confronto: recusou o uso da força policial para expulsar os invasores. Iniciaram-se negociações intensas entre lideranças comunitárias e o governo estadual. Após cerca de quatro semanas de ocupação, na madrugada de 12 de abril de 1991 as famílias deixaram voluntariamente os prédios. Em troca, o governo prometeu regularizar outras glebas para assentamento (surgiram então as ocupações conhecidas hoje como Areal II e Pinheiro) e prometeu construir novos apartamentos para a comunidade. Muitos ex-ocupantes instalaram-se provisoriamente num terreno alagado ao lado do condomínio – chamado hoje “Areinha” – permanecendo ali por anos sob condições precárias. Vale notar que nenhuma operação policial de desocupação violenta foi registrada na época: o processo ficou marcado pelo diálogo e pela saída pacífica dos moradores após o acordo político-social.
Capítulo 5: Desdobramentos legais e políticos
Legalmente, a invasão não resultou em disputas judiciais: a empresa Delfin já estava em processo de liquidação (tornando-se caso célebre do sistema financeiro) e a área permaneceu sem registro habitacional formal. Politicamente, o episódio reforçou o modelo de gestão de Brizola, que durante a década de 1980 vinha “tolerando invasões” e investindo em programas de urbanização de favelas. A proposta de converter ocupações informais em bairros regularizados consolidou-se ainda mais com o programa federal Favela-Bairro (que só chegaria à comunidade em 1998). Para o governo do Estado e a prefeitura, a ocupação de 1991 serviu como presságio das dificuldades habitacionais crescentes, mas as promessas iniciais – construção de casas populares para os invasores e urbanização rápida – acabaram não se concretizando. No fim, a Delfin faliu e abandonou definitivamente o projeto de 16 mil unidades na região. A comunidade, por sua vez, ganhou visibilidade política: lideranças locais passaram a cobrar títulos de propriedade e infraestrutura, enquanto a experiência reforçou entre os moradores a percepção de que mobilizações coletivas poderiam arrancar conquistas – ainda que tardias.
Capítulo 6: Impactos sociais e urbanísticos na comunidade
A ocupação transformou a geografia e a dinâmica social de Rio das Pedras. Surgiram novos bairros informais (Areal II, Pinheiro e Areinha) justamente em áreas que haviam sido negociadas na época. Esses locais se constituíram nas porções mais precárias da comunidade, com ruas alagadiças e casas improvisadas sobre turfas encharcadas (o solo pantanoso dos arredores do condomínio). Socialmente, o episódio fortaleceu o coletivo local e a organização comunitária, mas evidenciou a fragilidade das políticas públicas de moradia: apesar das promessas de reassentamento, muitas famílias continuaram vivendo sem acesso a água encanada, esgoto ou transporte urbano adequado por anos. Em 1996, grandes enchentes atingiram Rio das Pedras, o que levou a prefeitura a doar outra área (o atual bairro Rio das Flores) às famílias que perderam suas casas, mas a promessa de moradias dignas nunca se cumpriu integralmente. De forma geral, a invasão de 1991 representou um marco de empoderamento dos moradores, acelerando a expansão dos núcleos urbanos informais e dando início à configuração atual do bairro – o qual, apesar de contar hoje com programas como o Favela-Bairro, ainda convive com graves carências de infraestrutura e riscos ambientais.
Capítulo 7: Destino dos prédios e da área ocupada até hoje
As 15 torres da Delfin permanecem abandonadas até os dias atuais. Nunca foram concluídas ou habitadas legalmente, e o mato cresceu ao seu redor. Mesmo após as negociações de 1991, nenhum ocupante permanente voltou ao condomínio – em 2022 o local seguia deserto, dado como “cenário apocalíptico” por alguns observadores. Enquanto isso, a população dos arredores só aumentou: estima-se que Rio das Pedras ultrapassou 60 mil habitantes na década de 2010, distribuídos nas diversas sub-regiões (Areal I, II, Pinheiro, Areinha, Rio das Flores etc.) que nasceram após a ocupação. Em síntese, a área do antigo empreendimento Delfin tornou-se a margem entre a favela e as construções da Barra, lembrada até hoje como símbolo da luta por moradia no Rio.
Fontes: Reportagens contemporâneas da época e retrospectivas (O Globo), pesquisas acadêmicas e relatos de moradores acervo.oglobo.globo.com. Testemunhos de moradores (via publicações locais) corroboram que as famílias da comunidade foram as principais agentes da ocupação.